AOS SIGNATÁRIOS DA PETIÇÃO PÚBLICA
«REFERENDO SOBRE A EUTANÁSIA»
Fui convocado para comparecer ontem, dia 15 de Julho, numa audiência obrigatória na Assembleia da República, para discutir a Petição 'Referendo sobre a Eutanásia', que subscreveram. Compareci à audiência e partilho aqui o texto que apresentei à Comissão.
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Como 1º subscritor da PETIÇÃO PÚBLICA - REFERENDO SOBRE EUTANÁSIA enviada ao Senhor Presidente da República, fui convocado para uma audição obrigatória no Parlamento, para debater essa Petição, no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Acompanhado de minha filha Mafalda Freitas, estive presente nessa audição, ontem, dia 15 de Julho de 2020, pelas 14 horas. Apresentei uma exposição inicial, seguida de um debate que decorreu com serenidade e correcção. Ao partilhar a exposição que elaborei, venho de novo agradecer, muito penhorado, a todos os Amigos que tiveram a gentileza de acolher e apoiar esta minha iniciativa.
EXPOSIÇÃO
Em breve sinopse, pretendo explanar as respostas a duas interrogações que justificam esta audição.
Porque defendemos um Referendo Legislativo.
E porque recusamos a Eutanásia.
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a. Sou o primeiro subscritor de uma Petição Pública endereçada a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, e comungada por cerca de 4000 cidadãos que a acolheram e apoiaram, em apenas 4 dias de recolha de assinaturas.
b. A Petição tinha como desígnio apelar ao Senhor Presidente da República, no sentido de interceder junto da Assembleia da República, sensibilizando-a para a necessidade de um Referendo sobre a Eutanásia.
c. Porquê um Referendo? Pelas razões que se aduzem:
1. Numa matéria tão dilemática, complexa e multifacetada, entendemos que não seria curial nem legítimo que fosse debatida e dirimida exclusivamente no Parlamento. É um tema que demanda profunda e ampla reflexão, nomeadamente com a contribuição do parecer de peritos credenciados nesta temática, o que de facto não aconteceu, como nomeadamente confirma o parecer recentemente elaborado pela Comissão Nacional da Ética para as Ciências da Vida, que reprovou os projectos de lei sobre eutanásia de forma inequívoca.
Além disso, recordamos que esta matéria não tinha sido inscrita na agenda do programa eleitoral de alguns partidos nas últimas eleições legislativas, ficando deste modo ferida a representatividade democrática.
2. Aliás, as democracias representativas contemporâneas estão em crise. Vários consagrados autores, como Jurgen Habermas e Haanah Arendt, sublinham as limitações intrínsecas de um modelo democrático baseado na vertente representativa, avançando o argumento de que a representação não é suficiente para garantir a necessária legitimidade de um governo democrático. As premissas da participação e deliberação deveriam ser convocadas, de forma a encontrar um equilíbrio entre os representados e os seus representantes. Acentuam estes autores a vital importância da participação na concretização de uma polis democrática. Hoje os cidadãos não se vêm mais apenas como eleitores, não se identificam necessariamente com partidos políticos mas sim com «causas» ou reivindicações específicas.
Ora a realização de um Referendo sobre a eutanásia enquadra-se nesta assunção. Motiva e desafia o cidadão a reflectir, debater e pronunciar-se, neste caso sobre um assunto de enorme delicadeza, e insta a sua consciência a objectar ou a anuir, nomeadamente no tocante à demonização, ou não, de quem se prontifica a abreviar a morte de um ser humano doente, a pedido deste, em circunstâncias muito específicas.
Temos a profunda convicção de que a sociedade civil almejaria ter a oportunidade de se pronunciar sobre uma matéria tão melindrosa quão subjectiva, como sucedeu com o referendo sobre o aborto. O contrário será defraudar injustamente as suas legítimas expectativas.
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A segunda interrogação incide sobre a nossa posição relativamente à lei de despenalização da eutanásia. Somos frontalmente contra, por várias razões:
a. Testemunha-se na sociedade contemporânea ocidental uma mutação axiológica inquietante. A egolatria, o narcisismo, a idolatria do corpo, o anseio de eterna juventude, o culto de valores hedonistas, a recusa do sofrimento, o elogio da indiferença, a negação da transcendência, a irracionalidade da religião, o primado do relativismo e da economia, onde tudo se reduz à condição de mercadoria, o receio de envelhecimento e o medo de morrer, são postulados do pós-modernismo. A morte passa a ser um tabu. Quando o corpo começa a tolher, fica «estragado», já não rende e é inútil e descartável, o melhor será depositá-lo num hospital, um «não-lugar», uma espécie de armazém onde frequentemente se morre só. E se a medicina é impotente e o doente sofre e prefere morrer, o melhor é abreviar e despachar tecnicamente a morte, respeitando a vontade e a autonomia do doente. Assim germina neste caldo de cultura do pós-modernismo a ânsia febril e frenética de legalização da eutanásia, espantosamente agora, num tempo em que se testemunham notáveis avanços técnico-científicos da medicina e se prelibam novas conquistas e descobertas fascinantes.
b. Por isso, os signatários desta Petição entendem que a eutanásia é essencialmente um problema cultural e um retrocesso civilizacional. Não aceitamos uma civilização que prefere a morte porque não tem tempo de cuidar da vida, que pede a morte porque perdeu o sentido da vida, que não sabe ou não quer lidar com a dor e o envelhecimento, e que entende a vida como um absurdo e não como um mistério; de uma civilização que escolhe a renúncia, e não a esperança; que prefere o niilismo e o relativismo de Nietzche, à nobreza de espírito de Levinas; de uma civilização descamisada de humanidade e de solidariedade, e enroupada de indiferença e de egoísmo.
Defendemos que o direito à vida é um direito indisponível que antecede a autonomia e a liberdade. Que a vida é inviolável, como reza a nossa Constituição, uma emanação do povo, e não do Estado. Que não há vidas indignas de ser vividas. Que ninguém deveria ter, seja em que circunstâncias for, o direito de morrer, mas sim o direito de uma vida amorosamente assistida até à sua finitude natural. Que a recusa da eutanásia não significa impor a alguém o dever de viver. Mas tão somente reafirmar a intangibilidade e a sagração de um mandamento infrangível « não matarás». Que a ordem jurídica deveria proteger prioritariamente a vida, como modelo valorativo, e não a vontade de viver de cada um.
Não se elimina o sofrimento com a eutanásia:
com a morte elimina-se a pessoa que sofre. E também a medicina humanista que almejamos.
c. Esta profunda convicção fica ainda mais fortalecida quando a medicina nos diz que não há necessidade de matar porque os cuidados paliativos jugulam a dor e outros padecimentos, não aceleram nem atrasam a morte, afirmam a vida e consideram a morte um evento normal; e também porque é imparável o desenvolvimento fascinante da ciência médica. Atente-se na pandemia que nos ameaça. A humanidade procura desesperadamente um medicamento ou uma vacina para a cura. É um hino à vida e à sua inviolabilidade, e não uma cultura reaccionária da morte. Por algum motivo a eutanásia só foi legalizada, até agora, em 6 dos cerca de 200 países existentes. A humanidade em geral aceita a morte natural e recusa a sua antecipação artificial.
d. Por estas razões, quedamo-nos perplexos ao registar que o Parlamento não tenha concedido prioridade na sua agenda política a causas bem mais prementes do que a eutanásia. A urgente necessidade de dotar o país com uma rede consistente e abrangente de cuidados paliativos e continuados para milhares de pacientes que sofrem, resignados e impiedosamente abandonados, seria uma delas. Aqui há, também, e numa escala escandalosa, sofrimento «extremo» e mesmo, em muitos casos, «lesão definitiva» ou «doença incurável e fatal», para decalcar a terminologia clínica invocada nos projectos aprovados sobre eutanásia. Mas não. O Parlamento preferiu, precipitada e lamentavelmente, emplumar-se com a bandeira da eutanásia.
e. Sobejariam estes argumentos para fundamentar a nossa oposição à eutanásia. Mas há outras notas que gostaríamos de aditar, em breve suma:
1. É preocupante e indigno o fenómeno da «rampa deslizante», que ocorre na Holanda e na Bélgica. Vulgariza-se o que devia ser excepcional. A autonomia do doente acaba por ser uma falácia. Há eutanásias voluntárias e «involuntárias».
2. Há o sério risco de a eutanásia passar a ser encarada como resposta à doença e ao sofrimento. Neste novo contexto cultural de banalização da morte a pedido, a afectividade e a solidariedade com os doentes, deixarão de ser tão encorajadas.
3. A tentação de poupar recursos em doenças graves e prolongadas através da abreviação da vida de quem sofre, está longe de ser um fantasma alarmista.
4. A eutanásia pode comprometer a relação médico-doente e a imagem social do médico. Por outro lado, num país com profundas e crescentes assimetrias sociais, pode conduzir à coação moral. Surgirá uma enorme pressão sobre os que se possam sentir uma sobrecarga para os familiares ou para a sociedade. Dissemina-se a desconfiança e o temor, nomeadamente junto dos idosos.
5. A eutanásia não é um acto médico. Não é um tratamento médico. É a negação da medicina. Por isso a Associação Médica Americana tomou posição contra o envolvimento dos médicos na eutanásia e no suicídio assistido, referindo claramente que esse envolvimento contradiz o papel profissional e humanista do médico.
6. Recentemente a Associação Médica Mundial pronunciou-se firmemente contra a eutanásia e o suicídio medicamente assistido, «após um intenso processo de análise ».
Dinis da Silva Freitas
1º Subscritor da Petição Pública - Referendo Sobre Eutanásia